sexta-feira, 21 de outubro de 2016

INSÔNIA

INSÔNIA
Ele passeava sem rumo, simples, sentindo o chão sob seus pés descalços, toda a textura, o relevo. Vez por outra, uma brisa desarrumava-lhe os cabelos negros. Naquele dia, ele acordou e decidiu-se por uma vida adormecida. Queria verdadeiramente dormir até morrer, não como um suicida, simplesmente a opção mesma de viver a sonhar. Apenas ser e estar acordado já não tinha mais sentido, qualquer que fosse. Para ele, tudo o que precisava saber, sentir, viver já se consumara. Agora era hora de dormir, para por os sonhos em prática. Ou talvez fosse o contrário, quem sabe?
Enquanto suas pernas pensavam, sua cabeça se esvaziava, e foi seguindo assim, até que se viu adormecido, imóvel, ouvindo a própria respiração, o ritmo cardíaco, o sangue circulando por veias e artérias, os pelos do corpo arrepiando-se, ao mesmo tempo em percebia-se em pleno movimento aleatório, livre dos caminhos caminhados.
Pessoas começaram a cruzar-lhe o caminho, aliás o caminho começou a cruzar com as pessoas, tudo ao mesmo tempo, como numa irrealidade concreta, uma dúvida certa. A possibilidade de ser escolhido como uma escolha e ser esquecido tacitamente. Sem direção ou sentido, apenas a sensação do que se lhe apresentava ou desviava, nada além de nada.
Diálogos possíveis, conheceres e reconheceres, imagens e sons inéditos, tudo cabe, tudo se faz imune, impune, e o lume também esquece, parte da parte que não se sabe. Durante instantes imensuráveis pode vivenciar momentos aparentemente previstos. Mas o que realmente importa é a percepção de que tudo se encaixa a uma nova forma de olhar aquilo que é e não é, sem juízo de valores.
Pensou então sobre o que já disse o poeta, “viver é melhor que sonhar”; mas sonhar não é também parte do viver? A própria questão em si já se faz resposta, ao mesmo tempo em que renova e desfaz a dúvida. A consciência de si já traz em seu bojo própria desconsciência.
E nada mais há que se dizer. O cabo do corpo é o porto. Está morto.

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II – O PÉ E O CALÇADO
1 - Os caminhos se nos apresentam como possibilidades de novos encontros. Há os já conhecidos, cujos passos previamente estudados os percorrem sem sustos. Mas há também aqueles que se fazem na própria caminhada, e é deles (e neles), que nos completamos.
Seja como for, é a mente que constrói o percurso, em passadas ritmadas pelas necessidades que se impõem. Cada pé requer seu calçado que, incontinente, protege, impele, afirma, avança, comporta e conforta, autônomos, os desvios inesperados, junto a outros tantos também calçantes e calçados, num anonimato radicalmente plural.
A fôrma e a forma, a matéria e o sonho, o piso que os suporta, todo o caminho desejado, concluindo o destino que se propõe a cada pegada.
Deveras, cada ente na busca de seu caminho, movendo-se em distâncias, ruas e vielas mapeadas e assoladas pelos pés distraídos de quem às vezes passeia desvairado, mas consciente de seu cabo. O pensamento lhe preenche o tempo. Sua vocação é pensar a intuição existencial, sua própria condição. E o que lhe prende é a matéria em movimento, que gera o segmento intencionalmente.
As pernas já cansadas, os pés insuportavelmente presos a um sapato de couro preto, suando, apertados e ansiosos pelo descanso merecido. Enquanto se caminha e encaminha, os sentidos concentram-se na necessidade de deixar os pés respirarem. Nada mais importa no instante. Seus pensamentos são pura alegoria de uma necessidade que lhe consume, independente. A busca por um banco de praça faz- obsessiva e os passos já não são controlados ou guiados pela razão. Apenas pés, calos ambulantes, vagando sem direção, mas com um profundo sentimento de impotência ante a impossibilidade de se descalçarem autonomamente, embora exigentes num grito surdo.
Há um compromisso social como impedimento de sua liberdade individual, há a vergonha e o medo de não ser compreendido, a necessidade de se fazer pertencente, pertencido, aceitável... Os pés acabam por revelar, apesar de sua esquecida importância na totalidade do ser, a mediocridade inerente à condição social de ser no mundo.
2 - A escolha do calçado (sapato, sandália, bota, chinelo, pantufa, rasteirinha, melissa, krok, salto alto, salto baixo, carrapeta, galocha ou canoinha de pés - como dizem os índios norte-americanos - e há muito mais estilos e formas de abrigo podal), segue critérios alheios à sua vontade/necessidade (a do pé): é o gosto do ser social, do qual é a base, o fator preponderante à essa decisão. Aspectos como a estética, o conforto, a durabilidade e a moda são preponderantes e levados em consideração quando da escolha do calçado. Há ainda o fator cor, que está diretamente ligado à moda do momento e, por vezes simultaneamente, outras, secundariamente, ao gosto pessoal do indivíduo. Mas, para a maioria da população (que é de baixa renda em nosso mundo), o que importa mesmo é a relação custo/benefício ou, em outras palavras, o preço que se paga pela função, ou, “sapateidade” desse objeto.
Recentemente, uma pesquisa norte-americana (claro!) revelou uma nova relação entre os humanos e os calçados, mais ligada à subjetividade, ao prazer e à necessidade de possuir, fazer-se notar no mundo através do acúmulo de bens/grifes, e não pelas ações e pensamentos constituintes do ser. Verificou-se que há um número crescente de pessoas, em sua maioria mulheres, que possuem calçados às centenas, se não milhares, e fazem disso uma necessidade vital, como respirar, comer, amar. Pobres seres/teres humanos. “E assim caminha a humanidade...”

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I – MENDIGO
Há uma perfeita lógica em não ser o que se é e, em sendo, deixamos de sê-lo para não ser o que sendo queríamos ser...
Penso que por muitos séculos os humanos foram acumulando experiências e vontades escondidas, saudades e projetos impossíveis, em busca de uma auto-afirmação... Por outro lado, a eternidade sempre esteve ausente, já que o termo da vida se impõe, e não há aquele que não o conheça, que no fundo, não o tema e ao mesmo tempo, o deseje, na tentativa de encontrar respostas para a própria inexistência. O único eterno é a morte.
Vejo nos transeuntes olhares vagos, esquecidos, sem busca... Percebo-me semelhante, mas tento a fuga do comum, invisto em palavras para que possa ver meu reflexo nu. Inebriado com a possibilidade das discrepâncias, vejo-me aqui, sentado nesse banco de praça, a observar a condição humana, sem piedade, sem amor ou ódio, sem juízo de valores, sem medo.
Aquilo estava à minha frente, sentado na calçada, degustando uma fruta, indiferente aos que passavam, aos olhares assustados, acusadores, penalizados, que lhe eram dirigidos... suas roupas sujas, rasgadas, descalço, cabelo e barba sujos e embaraçados, aquele cheiro de urina amanhecida... não dava pra ver se tinha dentes, mas pelo jeito como comia voraz e saborosamente, isso era o menos importante...
Sua presença começou a incomodar, alguns chegaram perto dele e tentaram tirá-lo de lá ameaçando-o; o dono do bar em frente gritou de lá de dentro para que saísse ou iria chamar a polícia. Indiferente aos apelos, dia trabalho. Sua altivez, sua serenidade e passividade me afetaram.
Corto minha visão para o outro lado da praça, uma banca de jornal com várias pessoas paradas à sua frente, lendo as manchetes dos jornais expostos, tecendo comentários sobre alguma notícia, alheias à sua própria condição miserável, carentes de tempo para refletirem sobre a vida que levam ou a que são levadas. Esquecem-se do repouso devido e buscam frenéticas a última gota de sentimento nas vitrines imaginárias e voluptuosas que se lhes aparecem, enquanto o tempo vai caminhando e devorando suas esperanças.
Somos todos mendigos? Talvez... se não, então como é possível essa avalanche de sentimentos indizíveis, que nos transformam em maltrapilhos do desejo, na beira das calçadas, encostados na parede da saudade e da inércia...?
Já desfeito de sua sonolência, o mendigo levanta-se e vai pedir um cigarro a alguém que está parado no ponto de ônibus em frente. Afasta-se lentamente soltando fumaça e desaparece em meio ao formigueiro que já se forma no terminal de ônibus perto dali.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

HONOMEN

I

Em nome do nome
o homem sucumbe.
Denominados os valores,
os conceitos concluem
o nome do homem.

II

Sonhos são inomináveis,
homens sonham nomes,
interagem enquanto sobrenomes,
imagens sem reflexo,
despercebidos em pronomes.

III

O espelho oculta
homens enormes.
Em nome dos homens,
o nome Homem reflete
homens sem nome.

marco 11.04.95
A VOZ QUE ME CABE
SABE QUE FALO
DO QUE NÃO SABE.

marco 04.12.95

AURORA

Aurora,
senhora de minha hora,
que,
ora imagem,
cora a memória.
Explora o tempo
necessitado da ausência
que mora na demora
do fato imediato.

Agora,
corpo e sombra,
gêmeos
mundo afora.

marco 21.09.94
BEIJO

Cê sabe
É só um beijo
De boca
De língua
De carne
De Carmem Miranda.
Cê sabe
De fato
Não falo muito
Só sinto
o cinto apertado
Cê sabe
A boca
Não cabe
Na boca
Acabe
Com essa moda
e morda!

Marco, 17 de fevereiro de 92