sexta-feira, 21 de outubro de 2016

FOTOGRAFIAS

II – O PÉ E O CALÇADO
1 - Os caminhos se nos apresentam como possibilidades de novos encontros. Há os já conhecidos, cujos passos previamente estudados os percorrem sem sustos. Mas há também aqueles que se fazem na própria caminhada, e é deles (e neles), que nos completamos.
Seja como for, é a mente que constrói o percurso, em passadas ritmadas pelas necessidades que se impõem. Cada pé requer seu calçado que, incontinente, protege, impele, afirma, avança, comporta e conforta, autônomos, os desvios inesperados, junto a outros tantos também calçantes e calçados, num anonimato radicalmente plural.
A fôrma e a forma, a matéria e o sonho, o piso que os suporta, todo o caminho desejado, concluindo o destino que se propõe a cada pegada.
Deveras, cada ente na busca de seu caminho, movendo-se em distâncias, ruas e vielas mapeadas e assoladas pelos pés distraídos de quem às vezes passeia desvairado, mas consciente de seu cabo. O pensamento lhe preenche o tempo. Sua vocação é pensar a intuição existencial, sua própria condição. E o que lhe prende é a matéria em movimento, que gera o segmento intencionalmente.
As pernas já cansadas, os pés insuportavelmente presos a um sapato de couro preto, suando, apertados e ansiosos pelo descanso merecido. Enquanto se caminha e encaminha, os sentidos concentram-se na necessidade de deixar os pés respirarem. Nada mais importa no instante. Seus pensamentos são pura alegoria de uma necessidade que lhe consume, independente. A busca por um banco de praça faz- obsessiva e os passos já não são controlados ou guiados pela razão. Apenas pés, calos ambulantes, vagando sem direção, mas com um profundo sentimento de impotência ante a impossibilidade de se descalçarem autonomamente, embora exigentes num grito surdo.
Há um compromisso social como impedimento de sua liberdade individual, há a vergonha e o medo de não ser compreendido, a necessidade de se fazer pertencente, pertencido, aceitável... Os pés acabam por revelar, apesar de sua esquecida importância na totalidade do ser, a mediocridade inerente à condição social de ser no mundo.
2 - A escolha do calçado (sapato, sandália, bota, chinelo, pantufa, rasteirinha, melissa, krok, salto alto, salto baixo, carrapeta, galocha ou canoinha de pés - como dizem os índios norte-americanos - e há muito mais estilos e formas de abrigo podal), segue critérios alheios à sua vontade/necessidade (a do pé): é o gosto do ser social, do qual é a base, o fator preponderante à essa decisão. Aspectos como a estética, o conforto, a durabilidade e a moda são preponderantes e levados em consideração quando da escolha do calçado. Há ainda o fator cor, que está diretamente ligado à moda do momento e, por vezes simultaneamente, outras, secundariamente, ao gosto pessoal do indivíduo. Mas, para a maioria da população (que é de baixa renda em nosso mundo), o que importa mesmo é a relação custo/benefício ou, em outras palavras, o preço que se paga pela função, ou, “sapateidade” desse objeto.
Recentemente, uma pesquisa norte-americana (claro!) revelou uma nova relação entre os humanos e os calçados, mais ligada à subjetividade, ao prazer e à necessidade de possuir, fazer-se notar no mundo através do acúmulo de bens/grifes, e não pelas ações e pensamentos constituintes do ser. Verificou-se que há um número crescente de pessoas, em sua maioria mulheres, que possuem calçados às centenas, se não milhares, e fazem disso uma necessidade vital, como respirar, comer, amar. Pobres seres/teres humanos. “E assim caminha a humanidade...”

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