quinta-feira, 26 de agosto de 2010

ESTÁVAMOS ASSIM

Estávamos assim, parados,
obras aos pedaços,
vítimas do tempo:
memória relâmpago,
olhar chuvoso.

No ar, a transparência
de quem acaba de nascer.
O pulso,
esfacelado e sem calor.
Idéias perambulavam pela mente,
num itinerário absurdo do desejo.

Estávamos assim
e assim permanecemos longamente,
feito sementes,
distantes...

marco, 11.12.92.

ONDE

A pálpebra quebra-
da.
Horizonte infinito
sem sol.
Como num filme
quadro
a
quadro
As imagens congeladas
gélidas
angelicais
mudas.
Iceberg de sonhos,
ou f u m a ç a de cig a r r o
sem filtro.
Esqueço.
E tudo não passa de tudo.
Olho pro lado
ONDE?
Olho pro olho que olha
lágrimas s
u
s
p e
n
s
a
s num a
b
i
s
m
o
Espelho.

Marco, 15 de fevereiro de 92

BEIJO

Beijo
e já não sei mais
de teu valor.
Antes, soubera,
(na espera...)
o teu sabor!

marco, 14 de abril de 93

O POETA ARIANO SUASSUNA

Suassuna,
assuma
sua sina.
Suada palavra sua,
surdo é o eco
de sua sombra.
Ariano,
de março ou abril,
sua seca sobra.
Braço que compõe salmos.
Sorte,
tuas palavras sopraram-me
os ouvidos:
(suassuuuuuuna ... ssssss)

Assunto sério:
sou só,
e só sou
se só.

Alto,
seu auto compadece.
Soa sua saliva
nas imagens sem espelho,
nas miragens sem conselho,
nos sonetos suassunos
(de serpente ... sssssss....)

marco 16.12.93

terça-feira, 29 de junho de 2010

AURORA

Aurora,
senhora de minha hora,
que,
ora imagem,
cora a memória.
Explora o tempo
necessitado da ausência
que mora na demora
do fato imediato.

Agora,
corpo e sombra,
gêmeos
mundo afora.

marco 21.09.94

FOME

A fome come
com boca ruim.
Ruína em corpo,
dentes abstratos,
colo oco.

O olho,
vetor de desejos,
chove em vão.

Mão estendida,
perpétuo movimento vazio.
Toma o troco
e cala a inconsciência...

marco, 31.03.94 / 28.06.96

NATUREZA MORTA

Imagens transmutadas,
miragens,
pseudo-verdades
estáticas e herméticas
nos olhos de quem.
Imagens incorporadas,
corpo contínuo
e recluso,
desmanchadas em símbolos perfeitos:
desimagens magnéticas.

marco, 30.05.94 / 28.06.96

CORRE

Bitola estreita.
Discorre o anil
sobre a alvura segmentada.
Vidas paralelas,
monólogo perpétuo
de cores infinitas.
Corre o tempo
e as idéias passam.
Aos que restam,
o resto.

marco 30.03.94 / 28.06.96

segunda-feira, 21 de junho de 2010

SOMBRA

Sonho à sombra de uma voz.
Volta a vida de uma vez.
Calada e opaca a tez,
deságua lágrimas na foz,
logo após...

E o que soa
sonha só.

Marco, 19 de janeiro de 93

ENTRANHAS

I
Rasgo um amargo gosto
enfiado no meio dos olhos.
Desafio teus desejos,
desafio tua sombra,
sigo pelo túnel do teu medo.

II
Teu coração virou sucata,
teu coração não é reciclável.
Nenhum corpo jamais
perdeu-se tanto,
vibrou tanto,
espatifou-se contra o vento,
como o teu.

III
Ah... o teu suspiro...
quase me esqueço
teu cigarro aceso.
Ainda ouço os sons
de tua voz...
Que queres dizer?
As palavras,
em tua boca,
têm mau hábito.
Praguejas sem vontade,
pelo simples ato.

IV
Poeta, talvez.
Louco, não!
Que em nossos dias,
loucura não é exceção.


V
Cavo um buraco
no meio do mundo.
O escuro revela seu sorriso.
Boca torta,
boca sem graça.
Um deus sem tamanho
numa prece disfarçada.
Apago uma vela
para todos os santos,
sob a fé cega,
burra,
enorme,
mas ainda fé.
No fundo,
também um buraco
sem fundo.

VI
Teu desejo
deixou de desejar.
Na cabeça um lenço,
feito bandeira alheia,
feito todas as outras
cabeças feitas,
escondendo um crânio oco.
Olhares reflexos
de espelhos côncavos,
vídeo-tape.
E os membros todos,
o corpo todo,
reprimido,
contraído,
com movimentos peristálticos
sem cor, sem brilho,
brutos e mecânicos.


VII
A história é outra.
Os motivos, os mesmos.
O tempo acompanha
o ritmo do coração,
das entranhas do coração.
Os ruídos disfarçam as vontades amordaçadas.
O semblante entristecido
sobrevive,
apenas sobrevive,
como tantos.

VIII
Lacuna indecifrável:
o esboço de um ser
esperando pela alma.
Distante vai seu sonho,
levado pela realidade urgente:
sobreviver.

Marco

quarta-feira, 16 de junho de 2010

ACHO QUE É AMOR

Sereia da terra,
tão linda,
cristalina como as espumas
das ondas do mar.
Traz em meus sonhos
o sorriso de Gioconda,
o olhar de Medusa,
o fogo de Aletto...
Sereia distante,
tão dentro de minha mente,
quanto tempo ainda por vir,
tantas flores por colher,
tantos olhares para se ver...
E um suspiro,
entre tantos...
E vejo em teus olhos,
como um prisma,
as sete cores do arco-íris,
a prata-lua em pleno dia,
a Aurora-boreal em pleno Equador:
Acho que isso é amor!

marco 05.09.86

BOI

Oi boi!
Mói mocho
bicho eco.
Come corda,
cor de cera,
mero mato
seco.

Beco fundo:
mundo boi,
oi!

Marco, 18.03.94

UM OLHAR

OLHAR MADURO VIVO
OLHAR SIMPLES OLHAR
OLHAR MARCADO OLHADO
OLHAR FURTIVO
FURTANDO OLHARES

marco, 09.03.94

sábado, 8 de maio de 2010

ENTÃO

ENTÃO

Então,
se estas são as flores
dos amores perdidos,
escondidos no semblante
de amantes amargos;
se este é o sorriso indecente
do indeciso sorridente,
que vende um abraço
e o espaço que lhe cabe,
e não sabe que eu sei;
se neste minuto
um incauto menino
esconde sua mãe que chora
e implora a deus,
adeus;
se num momento
o invento deserto
acalenta seu tento,
desfeito num aberto
aborto absorto,
estou morto;
Então,
o que resta...
apenas o vinco
na calça desbotada,
e a noite transparente
aparentemente em minha mente
assim, assim... então...

marco 11.11 88

A NOITE ANUNCIADA

A NOITE ANUNCIADA

Os olhos percorrem
uma órbita sem sentido.
Estrelas prematuras,
distantes,
disputam com o sol
o interesse lunático,
a inspiração do poeta,
as ondas do mar.

Lâmpadas neon
reforçando os contornos negro-azulados.
Postes iluminados,
orientando percursos secretos.
O vermelho dos semáforos
é mais vivo,
trespassando os pára-brisas.

Na cidade
tudo já é brilho.
Sua alma transparece
nos edifícios apagados,
nos ônibus lotados.
A noite anunciada
predomina nos corações
dos anjos e dos demônios,
e também daqueles ímpios.

A noite anunciada
penetra,
corrompe,
descarta seus habitantes
da ilusão de um sono tranqüilo.
Consome-se na certeza
do próprio descanso,
antes que o sol lhe convença.

marco, 06.07.96

MAGALI

MAGALI

Atento,
adentro disforme
o sonho de Magali.
Quem?
Que importa?
A quem importa?
Ali, aqui,
o álibi de Magali.
Apenas um nome
sobre um sub-ser.
Serpente de repente,
camaleoa à toa,
Na cama, a leoa.
Meu álibi em Magali,
seu hálito em minha boca.
Meus poros impuros
transpiraram, suspiraram,
inspiraram, conspiraram,
piraram, viram
ali, bem ali,
sem álibi, Magali,
morta.
Palavra corrupta:
morte.
Magali morta,
bem ali.

marco 15.10.93

INVENÇÃO

Pode ser então
que o sol seja satélite.
A noite viraria dia,
o dia, mais dia ainda.

Meu nome sem registro,
cada um em seu assunto,
fugindo de casa,
esquecido da história.
Cada um em seu assento,
lombo de mula,
látex negro,
escorrendo feito verme
em direção ao vulcão.
A cada seis horas
uma estação do ano.

Pode ser então,
espaço e tempo,
apenas invenção.

Marco, outono’96

terça-feira, 27 de abril de 2010








A FUMAÇA

A FUMAÇA

Estávamos sentados no sofá, de costas para a janela da sala que fazia frente com uma praça, um edifício bastante alto e um viaduto. Conversávamos sobre problemas do cotidiano. De repente ele se levantou interrompendo a conversa, dizendo que “estava quase na hora”, e caminhou até a janela. Seu rosto parecia estar iluminado, um projeto de sorriso esboçava-se nele, os olhos fixos em algum ponto do outro lado da rua, naquele prédio muito alto. Levantei-me também e fui postar-me junto ao amigo. Olhei para seus olhos e busquei o alvo de seu olhar. Foi quando ele balbuciou: “Ela chegou”. Olhei para o prédio e notei que uma das janelas estava iluminada. Vi também a silhueta de uma mulher caminhando de um lado para outro, um cigarro nas mãos, parando na janela de vez em quando, olhando para a rua.
“Quem é ela?” perguntei ao amigo. Não obtive resposta. Ele estava petrificado. Seu olhar fixo naquela janela. O suor escorrendo da testa.
A mulher olhava em nossa direção. Sorvia tragadas sucessivas, soltando a fumaça suavemente pelas narinas e pela boca. Não me foi possível perceber os detalhes de seu rosto. Só pude ver que seus cabelos eram escuros.
Assim que o cigarro acabou, ela arremessou a bituca para a rua, fechou a janela e desapareceu. Meu amigo retomou nossa conversa como se nada tivesse acontecido. Fiquei espantado. Há alguns segundos apenas, ele estava completamente ausente. E agora, sem o menor constrangimento, falava comigo serena e despreocupadamente sobre sei lá o quê. Interrompi seu discurso incontinente. Insisti na pergunta: “Quem é aquela mulher?” Ele simplesmente respondeu “que mulher?”
“Como assim, que mulher? Aquela que se encontrava naquela janela ali, fumando?”, repliquei. Ele continuou insistindo: “Não sei do que você está falando.” Parecia brincadeira. Comecei a rir tentando deixá-lo a vontade para se abrir sobre possível paixão secreta, ou mesmo um fetiche. Ele ficou me olhando com uma cara de desconfiado, caminhou até o sofá, acendeu um cigarro e mudou de assunto.
Começamos a ouvir muito barulho vindo da rua. Eram pessoas falando, sirenes de ambulância ou polícia (não consigo distingui-las). Olhamos pela janela e vimos um homem parado, cercado por uma multidão, carros de reportagem de emissoras de televisão e rádio, viaturas da polícia e do corpo de bombeiros. A praça e o viaduto também estavam abarrotados de gente.
“O que será que aconteceu?” perguntei. “Não sei, mas podíamos descer para saber o que houve lá embaixo”, meu amigo respondeu.
Saímos para o corredor e, enquanto ele fechava a porta eu chamava o elevador. Aquele prédio era muito antigo, com o pé-direito muito alto. Os elevadores ainda tinham aquelas portas “sanfona”, que só abrem com a ajuda do passageiro. Estávamos no décimo andar. Enquanto descíamos, o elevador fazia muito barulho, como se estivesse raspando nas paredes do fosso. “Qualquer dia essa merda cai!” disse meu amigo. Quando passávamos pelo segundo andar, ouvimos um estalo, e começamos a ganhar velocidade para baixo. Meu amigo gritou para que eu me agachasse. Chegamos ao fundo do fosso rapidamente. Com o choque, fiquei desacordado por alguns minutos. Quando recobrei os sentidos, levei algum tempo para organizar o pensamento, recobrando a memória sobre a minha localização, os últimos acontecimentos. Comecei a escutar alguém gemendo perto de mim, mas não consegui ver quem era. Estava tudo escuro. De repente a memória voltou. Perguntei se meu amigo estava bem. Ele me disse que sentia muita dor no braço esquerdo. Imediatamente acendi um isqueiro e pude vê-lo caído sobre seu braço. Ajudei-o a sentar-se, encostando-o na parede do elevador.
Passados mais alguns momentos, comecei a gritar por socorro. “Será que tem alguém no prédio, lá no térreo?” perguntei. “O porteiro costuma ficar dormindo” respondeu o meu amigo.
Muito tempo depois alguém gritou lá de fora: “tem alguém aí?”. Respondemos imediatamente que sim. Informei também sobre a situação do braço de meu amigo e pedi para que fosse chamada uma ambulância. “Não se preocupem, tem bombeiros e ambulâncias de montão lá fora. Vou trazer ajuda”. Nosso salvador se retirou.
Mais tarde, uma voz masculina se apresentou como Capitão do corpo-de-bombeiros, perguntando como estava o braço de meu amigo. Disse-nos para mantermos a calma que o socorro já estava chegando.
Enquanto esperávamos, conversamos sobre diversas coisas. O absurdo da existência diante da fragilidade da vida, futebol, mulheres, bares noturnos, futuro, alimentos preferidos e odiados, dores de cabeça. Por fim, adormecemos.
Acordamos com o barulho de pessoas pisando sobre o teto do elevador. “Vocês estão bem? Respondam?” Após a nossa resposta, o tal capitão perguntou porque não havíamos respondido antes. “É que estávamos dormindo, capitão”. Ele pediu desculpas pela demora. Foi aí que descobrimos que passáramos a noite presos naquele elevador.
Assim que fomos retirados, eu e meu amigo fomos encaminhados para o pronto-socorro. Após algumas radiografias, obtivemos alta. Meu amigo engessara o braço. Eu não sofrera um arranhão sequer.
Retornamos ao apartamento por volta da hora do almoço. Bem próximo à entrada do prédio havia uma espécie de cercado feito com folhas de compensado. A praça continuava cheia de viaturas da polícia e dos bombeiros.
Meu amigo disse que queria ir para a cama o mais rápido possível. Nos despedimos ali mesmo. Fui para o bar que fica ao lado da entrada do edifício. Pedi um rabo de galo, acendi um cigarro e permaneci de pé, encostado no balcão, pensando nos acontecimentos da noite anterior. Foi quando me ocorreu a lembrança daquela “mulher da janela”. Pensava no mistério que meu amigo fizera sobre ela, em como ele ficara hipnotizado ao vê-la naquela janela. Eu mesmo comparei aquela imagem a um quadro.
Sem perceber, meus olhos estavam direcionados para a janela daquela mulher. Ela apareceu de repente. Olhava na direção do prédio do meu amigo. Caminhei um pouco para o meio da rua e pude vê-lo em sua janela, olhando-a. Fiquei ali, vendo-os, tentando advinha seus olhares. Assim que ela arremessou a bituca para baixo, acenei-lhe. Ela ficou parada, olhando para mim por alguns minutos. Depois fez sinal para que eu a esperasse. Imediatamente olhei para a janela de meu amigo, mas este já não se encontrava mais lá. Imaginei que se ele tivesse visto o sinal que ela me fizera, desceria imediatamente. Aguardei ansiosamente pela chegada de ambos.
Esperei bastante tempo, não sei quanto. Nada dos dois. Resolvi atravessar a rua e ir até o prédio dela. Chegando na portaria, dei de cara com a mulher. Estava parada, o olhar preso no vazio. Posicionei-me bem à sua frente até que nossos olhares puderam se cruzar. Nesse exato instante a fumaça do cigarro que ela fumava começou a envolvê-la. Era como se todo o seu corpo estivesse sendo absorvido pela fumaça, ou, talvez, transformando-se em fumaça. Não sei quanto tempo estive ali, olhando aquela cena como se fosse um filme na televisão, efeitos especiais... Encostei-me na parede e fui deslizando por ela até ficar sentado no chão. Finalmente a fumaça desapareceu. A mulher com ela. Diante de mim, apenas a mesa da recepção do prédio com um cigarro em cima. E uma sensação de neblina permanente, como se o ar estivesse meio turvo...
Levantei-me, peguei o cigarro e saí. O dia estava ensolarado. Guardei o cigarro no maço. Foi quando vi um homem saindo daquele cercado de compensado e caminhando até o bar. Estava pálido, com os olhos profundos, como se não tivesse dormido a noite inteira. Entrei no bar novamente e escutei o balconista gritando algo para aquele homem. Paguei a minha conta e, enquanto ele bebia um copo de água, ofereci-lhe meu maço de cigarros e o isqueiro. Agradecido, guardou-os no bolso da camisa e seguiu seu caminho.
No dia seguinte li no jornal a estranha história de um homem que havia se transformado numa árvore, diante de várias pessoas e que, de repente, desaparecera. A fotografia, tirada de um helicóptero, mostrava o local do ocorrido. Identifiquei, então, os prédios do meu amigo e daquela mulher. Pude reconhecer suas janelas e a fumaça que delas saía.
Nunca mais vi meu amigo, muito menos a mulher... mas a fumaça...

A ÁRVORE

A ÁRVORE

Sentado no banco da praça, ele observava os transeuntes, suas roupas, seu jeito de caminhar. Estava bêbado, completamente bêbado. O dia estava muito quente, fazendo com que transpirasse muito. Além disso, cheirava a urina, como se tivesse feito nas calças.
De um lado da praça, o viaduto. No meio da praça, uma estátua encardida, cheia de fezes de pombos e desgastada pelo tempo. Do outro lado, um prédio muito alto e antigo, com alguns andares habitados por mendigos, vidraças quebradas e um bar no andar térreo, com algumas pessoas bebendo cerveja. Eram todos homens.
Ele se levantou do banco, ficou parado por um instante, como que flutuando, olhando ora para o bar, ora para o viaduto, as idéias embaralhadas. Começou a caminhar em direção ao viaduto mas desistiu, voltando-se ao bar. Antes mesmo que entrasse, o balconista gritou lá de dentro:
- Sai fora!
Imediatamente ele parou e ficou olhando para o balconista por muito tempo. As pessoas de dentro do bar começaram a rir. O balconista, meio sem jeito, continuou falando para que ele fosse embora, sem resultado. Pessoas que passavam pela calçada olhavam curiosas para aquele homem. Algumas sorriam, outras passavam cabisbaixas, olhando de soslaio, as crianças gritavam.
Uma hora se passou, sem que aquele homem se movesse. Pessoas saiam e entravam no bar. Do outro lado, no viaduto, alguns passantes começavam a se aglomerar no muro, a fim de olhar aquele “louco”. Ele continuava olhando em direção ao balconista, que já não sabia mais o que fazer para afasta-lo dali. Na praça havia um princípio de aglomeração. Trabalhadores, mendigos, senhoras, crianças, vendedores ambulantes, desocupados, bêbados e cachorros. Surgiam comentários, os mais diversos, sobre o motivo daquele acontecimento.
- É louco!
- Só pode ser.
- Eu acho que é promessa. Dizem que a filha dele morreu atropelada bem na frente daquele bar.
- O cara tá bêbado!
O Balconista resolveu sair do bar e tirá-lo dali. A essas alturas muita gente se encontrava em torno do homem. Duas horas haviam se passado. Os mais sacanas já o haviam apelidado de “poste”.
- Vamos saindo daí, xará, se não o pau vai comer.
Nada. O homem estava mesmo numa espécie de transe. Alguns começavam a se perguntar se ele não estava em estado de coma. Outros achavam que podia ser uma espécie de ataque cardíaco. Um homem que se dizia Pai-de-Santo, resolveu fazer um “trabalho” ali mesmo, dizendo que aquele “cavalo” estava com o Pai-Cruzeiro no corpo, precisava de um “passe”. Alguém telefonou para o “Aqui-agora” avisando sobre o fato. Minutos depois a equipe de reportagem estava no local. Os repórteres faziam perguntas às pessoas no entorno, tentando saber mais sobre aquele indivíduo. Finalmente um cinegrafista se aproximou dele, fez closes de vários ângulos. O repórter meteu-lhe o microfone na cara para ver se conseguia uma entrevista, sem resultado.
Já estava escurecendo. A praça estava lotada de gente. O viaduto também. Todas as emissoras de rádio e TV da cidade estavam no local. A polícia foi chamada. Agora sim, as coisas seriam resolvidas. Finalmente seria desvendado aquele mistério. Os guardas iriam verificar sua documentação e os repórteres poderiam divulgar a história daquele homem, pobre homem.
Mas a polícia demorou a chegar. Não era nenhuma emergência. Já havia escurecido quando eles chegaram, com todo aquele aparato militar. Sirenes ligadas, policiais com meio corpo para fora das janelas da viatura, holofotes na cara dos curiosos, armas em punho. O “poste” continuava imóvel.
Um dos guardas se aproximou e ordenou: “Mãos na cabeça!” Nada... “Deitado no chão!” Nada, novamente. O público começou a rir. Os policiais se sentiram humilhados. “Vamos circular, pessoal! Isso aqui não é nenhum circo. Vamos circular!” Ninguém arredou o pé do lugar.
Depois de alguns minutos, os guardas resolveram abordar o “elemento” corpo-a-corpo. Pularam sobre ele, mas não conseguiram derruba-lo. Aliás, ele não se movera um milímetro. Alguém gritou lá do público: “Pega os documentos dele!” Enfiaram as mãos em seus bolsos, mas não encontraram nada. Nem documento, nem dinheiro. Nada!
Um pouco mais calmos, os policiais começaram a interrogar testemunhas. O primeiro foi o balconista do bar.
- Pois é, seu guarda, ele tava querendo entrar aqui no boteco, daí eu gritei pra ele ir embora. Ele tava meio cambaleando, e eu não tava a fim de aturar bêbado. Daí, ele parou ali mesmo, e não saiu mais do lugar. Foi isso que aconteceu. Faz umas horas já que ele está ali, no mesmo lugar.
Esse foi o depoimento de várias pessoas. Os guardas resolveram tirá-lo dali. Dois soldados pegaram seus braços e tentaram levantá-lo. Não conseguiram. As pessoas em volta começaram a rir de novo. Nova tentativa, outro fracasso. Um dos guardas sacou seu revólver e deu a ordem: “Você tem cinco segundos para sair daí, senão eu atiro”. Bem, o homem não saiu. O sargento resolveu então ligar para a delegacia e pedir ao delegado alguma sugestão para resolver aquele caso. O delegado não se encontrava, nem o escrivão. Apenas alguns policiais e muitos bandidos presos.
A noite já avançava. Muitas pessoas foram embora, pois tinham que trabalhar no dia seguinte. De madrugada alguém se aproximou do homem e percebeu que sua pele estava mudando de cor. Quando chegou mais perto, pôde notar que de seus pés saiam algumas fibras, parecidas com raiz de árvore. A pele parecia estar escurecendo, ficando marrom. Como estava escuro, aquela pessoa não deu muito crédito ao que estava vendo, pensando tratar-se de ilusão de ótica ou coisa semelhante.
Os policiais ficaram de guarda na viatura. Vez por outra, um deles dava uma volta em torno do homem pra ver se acontecia alguma coisa. Foi numa dessas voltas que um deles percebeu que o rosto do homem havia desaparecido. Imediatamente o guarda deu um grito de pavor, fazendo com que os outros policiais corressem até ele. Todos notaram a mesma coisa: aquele homem não tinha mais o rosto. Não que a cabeça tivesse desaparecido. Ela ainda estava lá. O fato é que não havia mais boca, nariz, olhos, sobrancelhas. Imediatamente o sargento ligou para o corpo de bombeiros, o IML e para um pronto-socorro próximo dali.
Assim que chegaram, os bombeiro cercaram o local com tapumes de compensado, para evitar que outra pessoas se aproximassem. O médico legista e os demais médicos do Pronto-socorro vestiram-se a caráter, com máscara e luvas cirúrgicas.
O primeiro médico a se aproximar do homem foi um cardiologista. Com o estetoscópio numa das mãos e o medidor de pressão na outra, deu início aos exames para verificar se aquela pessoa estava viva.
O coração batia lentamente, a pressão estava baixa, não era possível perceber a respiração. Nessas alturas, o doutor verificou que as orelhas também haviam desaparecido. Em seu lugar encontravam-se galhos de árvore com folhas. Era inacreditável! Aquele homem estava se transformando numa árvore. Os outros médicos foram chamados. “Devemos tomar alguma providência” declarou um deles. Os demais, ainda estarrecidos, apenas balançaram a cabeça afirmativamente.
Estava amanhecendo. O grupo de médicos mandou que reforçassem o cercado e aumentassem o número de policias. Ninguém deveria se aproximar dali sem autorização prévia deles (os doutores). Imediatamente seguiram para o palácio do governo para comunicarem a ocorrência ao governador e pedir-lhe instruções sobre o que fazer.
Ao saber do fato, o governador ligou para o presidente da república para informá-lo e, ao mesmo tempo pedir instruções sobre o procedimento a seguir.
O presidente estava meio sonolento e pediu ao governador que telefonasse ao ministro das forças armadas, para que este tomasse as devidas providências. Depois ele falaria com o ministro.
Ciente da notícia, o ministro considerou a ocorrência como um caso de segurança nacional e ordenou imediatamente que se deslocasse para o local um pelotão do exército, com equipamentos de guerra (tanques, metralhadoras, bazucas etc.), bem como um corpo de médicos, enfermeiras e psicólogos militares. Além disso, todos aqueles que sabiam do caso deveriam ser recolhidos no quartel da região, a fim de receberem instruções sigilosas.
Algumas horas depois o ministro, o presidente e o governador estavam no local, juntamente com os soldados, os médicos, as enfermeiras e os psicólogos, todos espantados. A metamorfose já estava bem adiantada. Os pés já haviam se incrustado no chão, como raízes, arrebentando a calçada. Seu braços estavam arqueados para cima, como galhos cobertos por folhas. Do tórax, abdômen e costas, saíam pequenos galhos. A cabeça, juntamente com os braços, compunha a copa. O mais interessante é que alguns pardais e pombas já haviam se familiarizado com a “’árvore”, pousando em seus galhos.
Paralelamente, os médicos decidiram remover “aquilo” dali. Chamaram a secretaria municipal de obras públicas e também um grupo de botânicos para efetuarem a remoção com a maior segurança.
O grupo de trabalhadores chegou e iniciou a escavação ao redor da árvore. Na hora do almoço, todos pararam para uma rápida refeição. A árvore ficou sozinha. Ninguém sabe exatamente o que aconteceu. Enquanto todos comiam, a metamorfose aconteceu. A árvore se transformou num homem novamente. Como se nada tivesse acontecido, aquele homem empurrou o tapume e caminhou em direção ao bar. O balconista, que não sabia de nada, ficou meio desconfiado do outro e foi logo falando: “Se vai ficar parado que nem ontem, já vou avisando, cubro de porrada”. O homem apenas pediu um copo de água. Enquanto bebia a água, recebeu de um estranho um maço de cigarros e um isqueiro. Agradeceu a oferta, terminou com a água e saiu. E ninguém nunca mais o viu, nem os médicos, nem o balconista, nem os psicólogos, os botânicos, os repórteres. Nem os pardais, nem as pombas...

SATÉLITE

Pode ser então
que o sol seja satélite.
A noite viraria dia,
o dia, mais dia ainda.

Meu nome sem registro,
cada um em seu assunto,
fugindo de casa,
esquecido da história.
Cada um em seu assento,
lombo de mula,
látex negro,
escorrendo feito verme
em direção ao vulcão.
A cada seis horas
uma estação do ano.

Pode ser então,
espaço e tempo,
apenas invenção.

Marco, outono’96

ANOITEÇO

Trancado no quarto
as palavras vertem-me
em confusões estudadas.
Concebo ilusões prévias,
acalento meu corpo cansado
(suspiro).
Orações transcritas
em poesia barata.
A procura me persegue,
esta loucura de ser sem saber,
este instante único
em que infinito e abismo
fundem-se em elos de uma prisão.
Calado, percorro linhas,
paráfrases sem sentido,
sentimentos indizíveis.
Anoiteço.

Marco, janeiro’96

ENTRELINHAS

Espaço escondido
nas entrelinhas do verso.
Onde caminhos,
dos mais novos
transportam sozinhos,
corpos.
Esqueço-me, perdido,
do que sou/fui/serei.

Abro a boca aberta.
Absorto, aborto o beijo
em você.
(nas entrelinhas)

Fica exposto o rosto,
o resto do rastro,
sobras de sombra
no escondido espaço,
escondido espaço;
escondido passo
que assombra.

Marco, outono de 93

segunda-feira, 26 de abril de 2010

SILHUETAS

Pontos dentro do espaço
contido em nossos olhos.
Contornos.
A expressão do olhar
descarta a maquilagem.
Corpos ardem em intenções
escondidos sob roupas pesadas,
corpos que flutuam no verão da cidade de concreto.
Mais do que os próprios contornos,
trejeitos deixam transparecer
formas esculpidas pelo cotidiano.
Deste lado da janela
os dias passam num vislumbre,
possibilidades infinitas de movimento
criando estruturas inconsistentes
para justificar a ausência de definição
das imagens que por aqui trafegam velozmente
deixando um rastro vago de emoções.
A certeza do fato existe
nas silhuetas imaginárias.
De longe é possível a criação.
O tempo atravessa a história de cada um,
assim como raios de sol
atravessam os vitrais das catedrais,
dando-lhes cor, movimento
e o próprio sentido vítreo.

Marco, 10.01.97