sexta-feira, 21 de outubro de 2016

FOTOGRAFIAS

FOTOGRAFIAS

I – MENDIGO
Há uma perfeita lógica em não ser o que se é e, em sendo, deixamos de sê-lo para não ser o que sendo queríamos ser...
Penso que por muitos séculos os humanos foram acumulando experiências e vontades escondidas, saudades e projetos impossíveis, em busca de uma auto-afirmação... Por outro lado, a eternidade sempre esteve ausente, já que o termo da vida se impõe, e não há aquele que não o conheça, que no fundo, não o tema e ao mesmo tempo, o deseje, na tentativa de encontrar respostas para a própria inexistência. O único eterno é a morte.
Vejo nos transeuntes olhares vagos, esquecidos, sem busca... Percebo-me semelhante, mas tento a fuga do comum, invisto em palavras para que possa ver meu reflexo nu. Inebriado com a possibilidade das discrepâncias, vejo-me aqui, sentado nesse banco de praça, a observar a condição humana, sem piedade, sem amor ou ódio, sem juízo de valores, sem medo.
Aquilo estava à minha frente, sentado na calçada, degustando uma fruta, indiferente aos que passavam, aos olhares assustados, acusadores, penalizados, que lhe eram dirigidos... suas roupas sujas, rasgadas, descalço, cabelo e barba sujos e embaraçados, aquele cheiro de urina amanhecida... não dava pra ver se tinha dentes, mas pelo jeito como comia voraz e saborosamente, isso era o menos importante...
Sua presença começou a incomodar, alguns chegaram perto dele e tentaram tirá-lo de lá ameaçando-o; o dono do bar em frente gritou de lá de dentro para que saísse ou iria chamar a polícia. Indiferente aos apelos, dia trabalho. Sua altivez, sua serenidade e passividade me afetaram.
Corto minha visão para o outro lado da praça, uma banca de jornal com várias pessoas paradas à sua frente, lendo as manchetes dos jornais expostos, tecendo comentários sobre alguma notícia, alheias à sua própria condição miserável, carentes de tempo para refletirem sobre a vida que levam ou a que são levadas. Esquecem-se do repouso devido e buscam frenéticas a última gota de sentimento nas vitrines imaginárias e voluptuosas que se lhes aparecem, enquanto o tempo vai caminhando e devorando suas esperanças.
Somos todos mendigos? Talvez... se não, então como é possível essa avalanche de sentimentos indizíveis, que nos transformam em maltrapilhos do desejo, na beira das calçadas, encostados na parede da saudade e da inércia...?
Já desfeito de sua sonolência, o mendigo levanta-se e vai pedir um cigarro a alguém que está parado no ponto de ônibus em frente. Afasta-se lentamente soltando fumaça e desaparece em meio ao formigueiro que já se forma no terminal de ônibus perto dali.

Nenhum comentário:

Postar um comentário