terça-feira, 27 de abril de 2010

A FUMAÇA

A FUMAÇA

Estávamos sentados no sofá, de costas para a janela da sala que fazia frente com uma praça, um edifício bastante alto e um viaduto. Conversávamos sobre problemas do cotidiano. De repente ele se levantou interrompendo a conversa, dizendo que “estava quase na hora”, e caminhou até a janela. Seu rosto parecia estar iluminado, um projeto de sorriso esboçava-se nele, os olhos fixos em algum ponto do outro lado da rua, naquele prédio muito alto. Levantei-me também e fui postar-me junto ao amigo. Olhei para seus olhos e busquei o alvo de seu olhar. Foi quando ele balbuciou: “Ela chegou”. Olhei para o prédio e notei que uma das janelas estava iluminada. Vi também a silhueta de uma mulher caminhando de um lado para outro, um cigarro nas mãos, parando na janela de vez em quando, olhando para a rua.
“Quem é ela?” perguntei ao amigo. Não obtive resposta. Ele estava petrificado. Seu olhar fixo naquela janela. O suor escorrendo da testa.
A mulher olhava em nossa direção. Sorvia tragadas sucessivas, soltando a fumaça suavemente pelas narinas e pela boca. Não me foi possível perceber os detalhes de seu rosto. Só pude ver que seus cabelos eram escuros.
Assim que o cigarro acabou, ela arremessou a bituca para a rua, fechou a janela e desapareceu. Meu amigo retomou nossa conversa como se nada tivesse acontecido. Fiquei espantado. Há alguns segundos apenas, ele estava completamente ausente. E agora, sem o menor constrangimento, falava comigo serena e despreocupadamente sobre sei lá o quê. Interrompi seu discurso incontinente. Insisti na pergunta: “Quem é aquela mulher?” Ele simplesmente respondeu “que mulher?”
“Como assim, que mulher? Aquela que se encontrava naquela janela ali, fumando?”, repliquei. Ele continuou insistindo: “Não sei do que você está falando.” Parecia brincadeira. Comecei a rir tentando deixá-lo a vontade para se abrir sobre possível paixão secreta, ou mesmo um fetiche. Ele ficou me olhando com uma cara de desconfiado, caminhou até o sofá, acendeu um cigarro e mudou de assunto.
Começamos a ouvir muito barulho vindo da rua. Eram pessoas falando, sirenes de ambulância ou polícia (não consigo distingui-las). Olhamos pela janela e vimos um homem parado, cercado por uma multidão, carros de reportagem de emissoras de televisão e rádio, viaturas da polícia e do corpo de bombeiros. A praça e o viaduto também estavam abarrotados de gente.
“O que será que aconteceu?” perguntei. “Não sei, mas podíamos descer para saber o que houve lá embaixo”, meu amigo respondeu.
Saímos para o corredor e, enquanto ele fechava a porta eu chamava o elevador. Aquele prédio era muito antigo, com o pé-direito muito alto. Os elevadores ainda tinham aquelas portas “sanfona”, que só abrem com a ajuda do passageiro. Estávamos no décimo andar. Enquanto descíamos, o elevador fazia muito barulho, como se estivesse raspando nas paredes do fosso. “Qualquer dia essa merda cai!” disse meu amigo. Quando passávamos pelo segundo andar, ouvimos um estalo, e começamos a ganhar velocidade para baixo. Meu amigo gritou para que eu me agachasse. Chegamos ao fundo do fosso rapidamente. Com o choque, fiquei desacordado por alguns minutos. Quando recobrei os sentidos, levei algum tempo para organizar o pensamento, recobrando a memória sobre a minha localização, os últimos acontecimentos. Comecei a escutar alguém gemendo perto de mim, mas não consegui ver quem era. Estava tudo escuro. De repente a memória voltou. Perguntei se meu amigo estava bem. Ele me disse que sentia muita dor no braço esquerdo. Imediatamente acendi um isqueiro e pude vê-lo caído sobre seu braço. Ajudei-o a sentar-se, encostando-o na parede do elevador.
Passados mais alguns momentos, comecei a gritar por socorro. “Será que tem alguém no prédio, lá no térreo?” perguntei. “O porteiro costuma ficar dormindo” respondeu o meu amigo.
Muito tempo depois alguém gritou lá de fora: “tem alguém aí?”. Respondemos imediatamente que sim. Informei também sobre a situação do braço de meu amigo e pedi para que fosse chamada uma ambulância. “Não se preocupem, tem bombeiros e ambulâncias de montão lá fora. Vou trazer ajuda”. Nosso salvador se retirou.
Mais tarde, uma voz masculina se apresentou como Capitão do corpo-de-bombeiros, perguntando como estava o braço de meu amigo. Disse-nos para mantermos a calma que o socorro já estava chegando.
Enquanto esperávamos, conversamos sobre diversas coisas. O absurdo da existência diante da fragilidade da vida, futebol, mulheres, bares noturnos, futuro, alimentos preferidos e odiados, dores de cabeça. Por fim, adormecemos.
Acordamos com o barulho de pessoas pisando sobre o teto do elevador. “Vocês estão bem? Respondam?” Após a nossa resposta, o tal capitão perguntou porque não havíamos respondido antes. “É que estávamos dormindo, capitão”. Ele pediu desculpas pela demora. Foi aí que descobrimos que passáramos a noite presos naquele elevador.
Assim que fomos retirados, eu e meu amigo fomos encaminhados para o pronto-socorro. Após algumas radiografias, obtivemos alta. Meu amigo engessara o braço. Eu não sofrera um arranhão sequer.
Retornamos ao apartamento por volta da hora do almoço. Bem próximo à entrada do prédio havia uma espécie de cercado feito com folhas de compensado. A praça continuava cheia de viaturas da polícia e dos bombeiros.
Meu amigo disse que queria ir para a cama o mais rápido possível. Nos despedimos ali mesmo. Fui para o bar que fica ao lado da entrada do edifício. Pedi um rabo de galo, acendi um cigarro e permaneci de pé, encostado no balcão, pensando nos acontecimentos da noite anterior. Foi quando me ocorreu a lembrança daquela “mulher da janela”. Pensava no mistério que meu amigo fizera sobre ela, em como ele ficara hipnotizado ao vê-la naquela janela. Eu mesmo comparei aquela imagem a um quadro.
Sem perceber, meus olhos estavam direcionados para a janela daquela mulher. Ela apareceu de repente. Olhava na direção do prédio do meu amigo. Caminhei um pouco para o meio da rua e pude vê-lo em sua janela, olhando-a. Fiquei ali, vendo-os, tentando advinha seus olhares. Assim que ela arremessou a bituca para baixo, acenei-lhe. Ela ficou parada, olhando para mim por alguns minutos. Depois fez sinal para que eu a esperasse. Imediatamente olhei para a janela de meu amigo, mas este já não se encontrava mais lá. Imaginei que se ele tivesse visto o sinal que ela me fizera, desceria imediatamente. Aguardei ansiosamente pela chegada de ambos.
Esperei bastante tempo, não sei quanto. Nada dos dois. Resolvi atravessar a rua e ir até o prédio dela. Chegando na portaria, dei de cara com a mulher. Estava parada, o olhar preso no vazio. Posicionei-me bem à sua frente até que nossos olhares puderam se cruzar. Nesse exato instante a fumaça do cigarro que ela fumava começou a envolvê-la. Era como se todo o seu corpo estivesse sendo absorvido pela fumaça, ou, talvez, transformando-se em fumaça. Não sei quanto tempo estive ali, olhando aquela cena como se fosse um filme na televisão, efeitos especiais... Encostei-me na parede e fui deslizando por ela até ficar sentado no chão. Finalmente a fumaça desapareceu. A mulher com ela. Diante de mim, apenas a mesa da recepção do prédio com um cigarro em cima. E uma sensação de neblina permanente, como se o ar estivesse meio turvo...
Levantei-me, peguei o cigarro e saí. O dia estava ensolarado. Guardei o cigarro no maço. Foi quando vi um homem saindo daquele cercado de compensado e caminhando até o bar. Estava pálido, com os olhos profundos, como se não tivesse dormido a noite inteira. Entrei no bar novamente e escutei o balconista gritando algo para aquele homem. Paguei a minha conta e, enquanto ele bebia um copo de água, ofereci-lhe meu maço de cigarros e o isqueiro. Agradecido, guardou-os no bolso da camisa e seguiu seu caminho.
No dia seguinte li no jornal a estranha história de um homem que havia se transformado numa árvore, diante de várias pessoas e que, de repente, desaparecera. A fotografia, tirada de um helicóptero, mostrava o local do ocorrido. Identifiquei, então, os prédios do meu amigo e daquela mulher. Pude reconhecer suas janelas e a fumaça que delas saía.
Nunca mais vi meu amigo, muito menos a mulher... mas a fumaça...

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